Como parte da cobertura do ArchDaily Brasil na Bienal de Veneza 2016, apresentamos uma série de artigos escritos pelos curadores das exposições e instalações à mostra no evento.
Como resposta ao desafio lançado pelo curador geral da XV Bienal de Arquitetura de Veneza, Alejandro Aravena - "Reporting from the Front” -, Portugal apresenta um pavilhão “site-específic”, construído numa frente urbana que se encontra em plena regeneração física e social, dentro da cidade de Veneza, e mais especificamente na ilha de Giudecca: o Campo di Marte. Na verdade, a ideia de instalar o pavilhão português in situ despoletou a conclusão do projeto de regeneração do Campo di Marte, proposto pelo arquiteto Álvaro Siza, há 30 anos. Após a “ocupação” deste local em construção, a exposição dará lugar a um habitat arquitetônico destinado aos residentes da Giudecca.
A representação oficial portuguesa - com curadoria de Nuno Grande e Roberto Cremascoli - escolheu, como tema central, o notável trabalho de Álvaro Siza no domínio da habitação social, abarcando os seus projetos em diferentes cidades – Campo di Marte (Veneza); Schlesisches Tor (Berlim); Schilderswijk West (Haia); e Bairro da Bouça (Porto) -, neles evidenciando a sua experiência de participação social, enquanto reflexo de uma compreensão democrática da cidade e da cidadania europeias. Os projetos de Álvaro Siza criaram verdadeiros locais de "vizinhança", tema central na atual agenda política europeia, em prol de uma sociedade mais inclusiva e multicultural.
Siza tem trabalhado estes conceitos em proimidade com, entre outras, a cultura arquitetônica italiana e, em particular, com o legado conceptual e ideológico de Aldo Rossi, cujo relevante ensaio "A Arquitetura da Cidade" perfaz 50 anos em 2016. Nesse sentido, a exposição destaca esse estimulante "encontro" entre Álvaro e Aldo; dois nomes metafóricos, que poderão também representar os vizinhos que se cruzam entre si, todos os dias, em todas as esquinas dos bairros de Siza.
A exposição está instalada no edifício projetado por Siza, ainda em construção. Este edifício faz parte do referido plano de regeneração do Campo di Marte, ganho pelo arquiteto português num concurso realizado em 1985, e que acabou por incluir outros arquitetos e outros bairros, como o conjunto de habitação social projetado por Aldo Rossi.
Em 2016, alguns meses antes da inauguração da Bienal de Veneza, Álvaro Siza regressou aos quatro bairros sociais que constituem o centro desta exposição. No Porto, em Veneza, em Haia e em Berlim, Siza visitou e conviveu com os diferentes residentes, entre antigos e novos vizinhos, percebendo a evolução dos seus habitats, mas também as principais transformações sociais e urbanas ali ocorridas, e hoje partilhadas por muitas outras cidades europeias: processos de imigração, guetização, gentrificação e turistificação.
Essas visitas e esses vizinhos estão agora retratados em fotografias e vídeos, respetivamente mostrados no exterior e no interior do Pavilhão de Portugal. Tratam-se de verdadeiros documentos da vida quotidiana, só possíveis graças à boa vontade dos residentes, a quem agradecemos toda a disponibilidade.
Esses documentos foram produzidos por uma qualificada equipa profissional e multidisciplinar, do nosso Media Partner SIC/Expresso, a quem reconhecemos o empenho demonstrado. Acompanham inúmeros outros documentos cedidos pelo Canadian Centre for Architecture (CCA), parceiro institucional, que, em conjunto com o ATER Veneza, o IUAV, a Municipalidade de Veneza Murano Borano, a UNESCO Venezia, o Instituto Camões, e a Embaixada de Portugal em Itália, se revelaram essenciais para a concretização desta iniciativa.
O nosso último agradecimento vai naturalmente para Álvaro Siza, notável arquiteto, cidadão do mundo e agora também da acolhedora ilha da Giudecca.
Where Alvaro meets Aldo
Há precisamente 50 anos, Aldo Rossi publicava L’architettura della citta (The architecture of the city), umas das obras mais seminais da cultura arquitetónica europeia da segunda metade do século XX. A influência deste ensaio em sucessivas gerações de arquitetos motivou, como é sabido, algumas filiações eminentemente académicas, mas estimulou outras interpretações, mais subjetivas ou mais poéticas sobre a relação entre cidade, arquitetura e sociedade. É neste segundo universo que inscrevemos a visão de Álvaro Siza, arquiteto contemporâneo de Rossi (apenas dois anos mais novo), e que, desde os primeiros contactos mútuos, aprendeu a ler nas entrelinhas da sua obra teórica. Ao fazê-lo, Siza passou a estabelecer uma relação dialética com o imaginário rossiano, contribuindo, a partir da década de 70, para uma aproximação metodológica entre as denominadas “Escola de Veneza” e “Escola do Porto”.
Tal como Rossi, também Siza estudou a “textura” das cidades, procurando as suas estruturas permanentes, as suas invariantes, os seus elementos primários e os seus artefactos urbanos, para usarmos algumas das nomenclaturas do livro. Tal como Aldo, também Álvaro foi convidado, há 40 anos, a participar na Bienal de Veneza de 1976, no evento coletivo Europa-América, Centro Storico-Suburbio, coordenado por Vittorio Gregotti e Peter Eisenman. Em espaços contíguos do Magazzini del Sale, em Zattere, ambos expuseram as suas obras. Siza mostrou os seus primeiros projetos de Habitação Social, realizados no Porto e nas Caxinas, traduzidos por uma belíssima amálgama de folhas de esquissos. Aldo Rossi, Eraldo Consolascio, Bruno Reichlin e Fabio Reinhart expuseram ali, pela primeira vez, a notável colagem La Città Analoga (The Analogous City). Usando linguagens distintas, Álvaro e Aldo trouxeram a mesma mensagem à Bienal de Veneza: a cidade que conhecemos, e que desenhamos continuamente, resulta da acumulação de distintas tipologias arquitetónicas - tal qual objets trouvés - que a “memória coletiva” vai retomando ou reciclando ao longo da História.
No entanto, e enquanto Rossi dedicou a sua investigação urbana à sistematização de um número definido de (arque)tipos arquitetónicos, encontrados nessa cidade histórica, Siza consagrou a sua carreira a multiplicar os seus próprios (hétero)tipos, inscrevendo-os em tantas outras geografias e culturas. Foi esse “outro” sentido crítico, também ele rossiano, que levou Siza: a estudar atentamente o tecido urbano da Venezia Minore - descrito por Egle Trincanato -, para realizar o seu plano para a Giudecca; a reinventar o Haages Portiek para distribuir as suas tipologias de habitação social em Haia; a revisitar a arquitetura moderna de Berlim para traçar uma nova esquina de Kreuzberg; a cruzar as estruturas dos bairros populares do Porto (as “ilhas”) com os modelos de habitação operária do Movimento Moderno no seu projeto para o Bairro da Bouça (programa SAAL/Norte).
Álvaro e Aldo foram também companheiros em viagens, encontros, concursos e debates: em Portugal, no período pós-revolucionário (1974); em Santiago de Compostela (1975); no Lido de Veneza, na conferência Quale Movimento Moderno? (1976); na Universidade dos Andes, em Bogotá (1982), na companhia de um amigo comum - Oriol Bohigas; e, por fim, na concretização do plano do Campo di Marte, na Giudecca (1985-1995). Esta foi uma relação longa que só viria a ser interrompida com a morte prematura de Rossi em setembro de 1997.
Lendo a obra de Aldo, Álvaro aprendeu a entender as cidades enquanto lugares de memórias coletivas e de vizinhanças partilhadas, questões que importa hoje conhecer, defender e reportar, a uma Europa em crise na sua relação com o “outro”. Afinal, Alvaro e Aldo podem também ser qualquer um de nós.
Aprendendo com a Venezia Minore
O projeto de Álvaro Siza para a área do Campo di Marte resultou de um concurso limitado por convites, lançado em meados da década de 1980, pelo Venice IACP (Autonomous Institute for Public Housing), - hoje ATER Venezia -, em torno de uma área residencial muito degradada (e parcialmente demolida) na ilha da Giudecca. O arquiteto português foi o vencedor desse interessante confronto de ideias que envolveu outros concorrentes: Aldo Rossi, Carlo Aymonino, Rafael Moneo, Mario Botta, Boris Podrecca, Aldo Van Eyck, James Gowan, Gianfranco Caniggia e a dupla Mankowsky e Bojanowsky. Tendo o francês Bernard Huet como presidente do júri, o concurso previa, não apenas o faseamento das diversas frentes propostas no plano vencedor, como também a possibilidade destas serem detalhadas por alguns desses outros autores.
Antecipando essa possibilidade, Álvaro Siza desenhou um tecido urbano ordenado e ritmado, com base na estrutura alongada do antigo cadastro, traçado de Norte para Sul - entre o Canal da Giudecca e a Lagoa -, e retomando alguns dos arquétipos arquitetónicos existentes nesta ilha: galerias, pórticos, pátios, loggias e varandas de topo. Para o efeito, estudou criteriosamente a análise urbana desenvolvida por Egle Trincanato, notável investigadora doIstituto Universitario di Architettura di Venezia, no seu seminal livro Venezia Minore, publicado em 1948. Nele aprendeu a conhecer as invariantes tipológicas desse tecido habitacional, de cariz operário, que deu forma ao interior da ilha da Giudecca, e do qual emergiram, por contraste, as igrejas e os palacetes que bordejam o canal e a lagoa. Essa análise tipo-morfológica, proposta por Trincanato no seio da “Escola de Veneza”, no final dos anos 40, antecipou trabalhos congéneres desenvolvidos por Giuseppe Samonà, Saverio Muratori e Aldo Rossi nas décadas seguintes.
Assumindo, também ele, essa influência, Siza optou, no seu plano geral, por uma composição urbana coesa, pela uniformidade de cérceas, e por ritmos constantes de janelas dispostas ao longo de extensas fachadas. Esta espécie de “meta-projecto” foi posteriormente interpretado por Aldo Rossi, Carlo Aymonino e Rafael Moneo, três arquitetos elencados no concurso, e posteriormente convidados a projetar os diferentes edifícios adjacentes ao quarteirão atribuído a Álvaro Siza, no centro do Campo di Marte. Ao longo das décadas seguintes (1986-2006) apenas os dois arquitetos italianos conseguiram completar as suas obras, estando hoje o projeto de Siza parcialmente concluído (por falência do construtor em 2010), e o do espanhol Rafael Moneo numa fase embrionária de estudo.
Em 2015, Portugal propôs ao ATER Venezia instalar a sua representação oficial na Bienal de Arquitetura de Veneza de 2016, na frente incompleta do quarteirão desenhado por Álvaro Siza, facto que ajudou a despoletar a sua conclusão e, previsivelmente, a futura execução da praça contígua. Nesse processo, Siza regressou ao Campo di Marte, em Fevereiro de 2016, e conheceu alguns dos habitantes da frente já concluída do seu projeto. O encontro permitiu-lhe compreender o modo como a população se apropriou das tipologias edificadas, mas também dos espaços coletivos. Visitando diferentes vizinhos, Siza com eles conversou, fumou e brindou, ao longo de uma animada tarde de convívio. Ali ouviu dizer, em dialeto local, que a Giudecca é a última ilha onde moram os autênticos venezianos, em contraste com a acelerada desertificação e “turistificação” da ilha central em torno do Grande Canal. No Campo di Marte, Siza compreendeu, finalmente, porque valeu a pena estudar a forma urbana e a vida social dessa Venezia Minore, na qual é ainda hoje possível construir verdadeiros laços de vizinhança.
Atravessando o Haagse Portiek
Os bairros de habitação social realizados por Álvaro Siza no celebrado Programa SAAL (Serviço de Apoio Ambulatório Local/Local Ambulatory Support Service), implantado após a Revolução de 25 de Abril de 1974 em Portugal, mereceram, a partir de então, uma especial atenção, por parte da crítica internacional de arquitetura, mas também de políticos e ativistas envolvidos em experiências congéneres noutras cidades europeias. Assim aconteceu com Adri Duivesteijn, councilor for Housing and Urban Development of The Hague, na Holanda, o qual convidaria Siza, em 1984, a redesenhar uma área degradada e estigmatizada da sua cidade - o bairro de Schilderswijk - e ali construir novas frentes de habitação social. Predominantemente habitado por populações imigrantes, sobretudo da Turquia, Marrocos, Cabo Verde e Suriname, o bairro possuía um plano urbanístico precedente, baseado no zoning funcional e na segmentação formal, paradigmas modernistas que não agradavam ao jovem vereador.
Após visitar o bairro e escutar os desejos dos habitantes - acompanhado por uma equipa de arquitetos locais, assistentes sociais e tradutores -, Álvaro Siza projetou a primeira fase da construção, no topo sul do conjunto: a frente de Punt Komma, realizada entre 1986 e 1989. Nessa frente, Siza recriou a morfologia dos quarteirões históricos da cidade, utilizando o seu revestimento dominante - o tijolo -, e recriando um espaço tradicional de acesso aos edifícios a partir da rua - o Haagse Portiek. Esse pórtico permitia-lhe, através de uma larga escada exterior, aceder a um patamar comum às entradas para os novos apartamentos. Esta revisita “culturalista” à história de Haia seria acompanhada pela criação de tipologias habitacionais flexíveis, passíveis de se adaptar às diferentes vidas familiares, independentemente da origem cultural e religiosa dos seus habitantes.
A proposta de Siza foi continuamente debatida com os diversos vizinhos, a partir de simulações dos espaços interiores, realizadas, à escala real, no ROL (Spatial Development Laboratory localizado em Haia). Ali, todos puderam conhecer a configuração dos novos apartamentos e propor possíveis alterações, num método participativo de verdadeiro empowerment social.
Numa segunda fase, realizada entre 1989 e 1993, na área da Jacob Catsstraat, o arquiteto português retomou algumas das referências anteriores – os quarteirões compactos, o revestimento em tijolo, o acesso em pórtico, a evocação da arquitetura hanseática -, diversificando as soluções tipológicas, entre edifícios de habitação coletiva e casas unifamiliares em banda, de novo ao encontro da cultura urbana de Haia.
Em Março de 2016, Álvaro Siza regressou ao bairro de Schilderswijk, reencontrando o seu antigo cliente e amigo Adri Duivesteijn, hoje um distinto membro do Senado da cidade. Juntos percorreram as ruas e os edifícios bem cuidados da zona, na companhia de Lisbeth Alferink, assistente social da equipa, visitando algumas famílias turcas, sírias e marroquinas, que ali se fixaram ao longo dos últimos 25 anos.
Após cruzar o Haagse Portiek, o grupo entrou em diversas casas, descalçando-se, sentando-se confortavelmente nas salas, conversando com as famílias e bebendo o inevitável Rize Tea servido pelas afáveis mulheres turcas. Na viagem desde o aeroporto de Schipol, alguém alertara Álvaro Siza para a insegurança daquele bairro, hoje designado por muitos como o “Triângulo da Sharia”. No entanto, esse dia de visita tornaria evidente, para todos, que a anunciada “guetização” do bairro é, antes de mais, produto da retórica política mais conservadora da Holanda. Em Schilderswijk, as boas relações de vizinhança mantêm-se e recomendam-se.
Kreuzberg, Que Pasa?
Quando Álvaro Siza visitou Berlim no final da década de 70, a cidade permanecia, há mais de quinze anos, cercada por um Muro físico e político, um dos principais símbolos da Guerra Fria. Ainda marcada pelas feridas da precedente II Guerra Mundial, Berlim iniciava então a sua “reconstrução crítica” no âmbito do processo urbanístico IBA (Internationale Bauausstellung, 1979-1987). Após participações em dois concursos, sem os resultados esperados, Siza decidiu tentar uma terceira oportunidade, respondendo ao desafio para regenerar um quarteirão completo em Schlesisches Tor, na zona de Kreuzberg. Situado nas imediações do Muro, Kreuzberg era então um bairro problemático da periferia da Berlim Ocidental, caracterizado por uma população idosa, imigrantes turcos e alguns artistas “squatters” recém-chegados. O bairro estava abrangido pelo financiamento destinado a zonas envelhecidas (IBA Altbau), por oposição aos novos investimentos e projetos em curso na área central cidade (IBA Neubau).
Álvaro Siza venceu o referido concurso em 1980, com base numa proposta que interpretava criticamente os fragmentos e os vazios urbanos ali deixados pela destruição da guerra, procurando integra-los numa composição sensível, que não reconstruia o quarteirão, antes deixava adivinhar a riqueza do seu interior. De igual modo, e evitando uma excessiva “higienização social”, Siza integrava algumas das principais aspirações dos habitantes, propondo dois equipamentos sociais inseridos no seio do quarteirão: um Infantário e um Centro de Dia para idosos. Por fim, numa das esquinas da Schlesisches Strasse, o arquiteto português desenhou um edifício de habitação de sete pisos, aprendendo, uma vez mais, com a diversidade arquitetónica envolvente: “monumentalizou” a esquina, elevando a platibanda do edifício; prolongou as cornijas de um imóvel vizinho; procurou integrar o restaurante turco preexistente na base do prédio; marcou a esquina com um pilar “suspenso”; anunciou a entrada principal soltando um pórtico da fachada; manteve uma “fenda” no quarteirão, convidando à descoberta do pátio traseiro. No mesmo sentido, diversificou as tipologias e os sistemas de acesso aos apartamentos, tornando-os mais flexíveis, face à diversidade social e cultural dos seus habitantes. Um irónico graffiti, de inspiração literária, pintado na platibanda curva do edifício – Bonjour Tristesse – marcaria, por fim, a primeira “apropriação” crítica por parte dos vizinhos, desafiando o desenho regular das suas janelas e a cor melancólica das suas fachadas. Na verdade, Siza revisitava, neste projeto, o imaginário “expressionista” da cidade, evocando alguns dos heróis do Modernismo berlinense: Erich Mendelsohn, Bruno Taut e Hans Scharoun.
Em 2016, trinta anos após a conclusão deste processo, Álvaro Siza regressou a Schlesisches Tor, na companhia da arquiteta Brigitte Fleck, sua amiga e colaboradora no projeto. Ambos percorreram os jardins do Infantário, subiram à cobertura do Centro de Dia e receberam uma calorosa receção dos usuários mais idosos. No edifício “Bonjour Tristesse” reencontraram alguns dos seus primeiros habitantes, de origem turca, percebendo, no entanto, que o edifício está hoje em pleno processo de “gentrificação” social. Adquirido por um fundo imobiliário austríaco, os seus apartamentos e lojas estão agora a receber novos ocupantes, à custa da “expulsão” de muitas famílias e atividades preexistentes. O restaurante turco no piso térreo deu lugar a um novo “franchising” de comida mexicana da marca “Que Pasa?” (What’s happening?). Uma pergunta pertinente a fazer a Kreuzberg, bairro outrora periférico, mas que se tornou no centro da vida cosmopolita da nova capital da Alemanha reunificada. O Muro de Berlim caiu há quase trinta anos; outras “vizinhanças” germinaram desde então.
As sucessivas vidas do Bairro da Bouça
No Verão português de 1974, apenas três meses após a Revolução de 25 de Abril, Nuno Portas, então Secretário de Estado da Habitação e Urbanismo, lançou um despacho legal que permitia às populações mais carenciadas organizarem-se e lutarem politicamente pelo “direito à habitação” e pelo “direito à cidade”, permanecendo nos seus lugares de origem ou de residência. Esse programa, denominado SAAL (Serviço de Apoio Ambulatório Local/Local Ambulatory Support Service), conduziu à realização de projetos de realojamento propostos por diferentes arquitetos, num diálogo permanente com as diversas associações de moradores, entretanto formadas. Na Bouça, no centro do Porto, diversos terrenos foram então “ocupados” pelas populações, facto que envolveria diretamente Álvaro Siza, autor de um projeto de realojamento anteriormente destinado àquele bairro. Recetivo às novas exigências dos habitantes da Bouça, o arquiteto readaptou o seu projeto de modo a nele poder integrar um maior número de moradores carenciados.
Na sua proposta, Siza partiu de uma dupla revisita histórica: por um lado, interpretando as formas e os espaços dos antigos bairros populares do Porto: as “ilhas”; por outro, evocando os modelos eruditos da habitação operária, desenvolvidos pelas vanguardas modernas europeias nas décadas de 20 e 30. Dessa “fusão” resultou a primeira vida do Bairro da Bouça. Entre 1975 e 1976, construíram-se dois blocos alongados de apartamentos, de quatro pisos (2 duplex), com entradas diretas a partir da rua ou de uma galeria elevada. A relação comunitária passava então a exercer-se no uso quotidiano dos diferentes pátios alongados, entre os blocos de habitação, alguns marcados por uma sucessão de escadas exteriores multifuncionais.
Essa primeira vida seria subitamente interrompida, em 1976, com o fim do programa SAAL. A partir de então, as políticas de alojamento social passaram para a administração dos municípios, num sistema de representatividade eleitoral adverso aos modelos de democracia “participativa”, como os que tinham caracterizado o processo SAAL. Durante vinte anos, o bairro permaneceu amputado, e progressivamente degradado, até ao momento em que a associação de moradores, em articulação com outra cooperativa de habitação, propôs ao município terminar o projeto de Álvaro Siza. Essa iniciativa originou a segunda vida do Bairro da Bouça, dando oportunidade ao seu autor de demonstrar, por fim, o sentido de adequação arquitetónica e de integração urbana da sua proposta. Essa segunda vida, instaurada em 2006, trouxe inevitavelmente novos residentes de distintas condições sociais e culturais para o lugar.
Em 2016, uma década após a conclusão do bairro, Álvaro Siza revisitou-o, entrando nas casas de diversos vizinhos e indagando-os sobre o modo como nelas viviam. Ali reencontrou alguns dos primeiros habitantes que, com o seu apoio, tinham lutado pela formação da Associação de Moradores em 1974. Ouviu as suas queixas sobre o processo de conclusão das obras, e de como muitos dos seus companheiros não tinham querido ou podido regressar às novas casas que lhes estavam destinadas. Noutras visitas, Siza conheceu o resultado desse processo de gentrificação, conhecendo jovens arquitetos, designers e artistas, hoje proprietários das casas colocadas no mercado imobiliário pela cooperativa de habitação. Evitando tecer falsos moralismos, Álvaro Siza compreendeu que o bairro já não fazia apenas parte do seu imaginário revolucionário, de há 40 anos, mas que se tinha transformado num fragmento inter-classista, inter-cultural e inter-geracional da cidade contemporânea. Que melhor condição, afinal, para um lugar de verdadeira vizinhança? A terceira vida do Bairro da Bouça só agora começou.